“...Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi.E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar.Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar...” C.L.
Havia um algo que morava dentro de mim. Não sei se este algo era gente, bicho ou coisa, mas me parecia mais como bicho, pelas coisas que provocava em mim, quando aumentava meu instinto e diminuía minha razão.
Este bicho – vou tentar chamá-lo assim – entrou em mim sem eu perceber, e dominara meus sentidos e minhas razões. As vezes ficava oculto, quieto - como bicho que dorme - outrora acordava e com isso acordava a casa inteira, a cidade, tudo em volta, fazia tudo girar e eu perder meus sentidos, como se só ele fosse importante dentro de mim, sabia se fazer presente, e vinha a hora que bem entendia.
Como algo paradoxal que era, provocava em mim a alegria de tê-lo, como se pra viver eu tivesse a necessidade de possuí-lo, nem sabia mais lembrar como eu era sem este bicho dentro de mim, parecia até mesmo que já havia nascido com ele, mas não era verdade.
Era um bicho feroz, que me comia inteira por dentro quando resolvia acordar, comia meu estomago, meu intestino, pulmões, pâncreas e fígado. Comia por puro orgulho de me ver sangrar por dentro. Ainda assim me fazia alegre, creio que eu interpretava esta fome toda como uma brincadeira de chamar a atenção.
Dentro desta alegria de sangrar por dentro, eu me sentia indo embora, dando lugar apenas para o bicho que me possuía.
Porém, hoje, acordei assassina. Queria matar o bicho que havia dentro de mim e me libertar assim daquele que, infiltrado nas minhas artérias, estancava meu sangue. Por um momento me veio o instinto maternal, se este bicho estava dentro de mim, havia sido eu sua criadora, sua mãe. Se meu bicho crescera dentro de mim, foi por que eu alimentei, por um momento tive dó, receio e fraqueza. Além de tudo, havia me acostumado a viver com aquele bicho dentro de mim, saberia ainda viver sem ele? Ele não deveria ser importante pra mim, anatomicamente falando não deveria estar ali, mas ele estava, e já era parte de mim.
Eu já nem sabia se possuía o bicho ou se o bicho me possuíra.
Mas hoje, acordei assassina, matei o bicho - sem prazer mas com certeza – com um golpe único e fatal, ele morreu dentro de mim. Vi o sangue do bicho correndo pelo meu rosto, o vi descendo pelo ralo e o vi sangrar em meus pesadelos. Tudo que era do bicho saiu de mim por todos os poros, como se fosse uma sujeira, uma doença.
Hoje meu bicho foi embora, ainda dentro de mim deixou suas marcas, suas feridas... Mas meu organismo tem uma capacidade imensa de auto-recuperação.
O bicho foi embora e deixou comigo a única coisa boa que, realmente, me trouxe durante todo a duração da sua vida, a inspiração que me trazia. Foi embora, mas me deixou o que há de bom em mim: eu.
Aquilo que me possuía foi embora, e aprendi a ser somente uma.
Porque hoje, finalmente, eu acordei assassina.